sábado, 28 de novembro de 2009

Conto - Como suspeitos de um crime...

Ela acorda com a barriga gelada de expectativa pela tarde que chega. Afasta, com um banho demorado, todos aqueles pensamentos impacientes. Prepara o corpo e a mente. Arruma sua mala para o dia seguinte, pois sabe que hoje poucas peças serão necessárias. Está louca para sair logo de casa mas enrola. Está com medo de sair de casa e se apressa. Se convence de que não está sonhando, pois há muita lucidez nessa loucura toda. Lucidez excessiva é altamente prejudicial, conclui. Dragões incandescentes percorrem seu corpo. Um pouco de febre também. Um truque e mais uma brilhante atuação perante a família. A pressão de olhar nos olhos deles. Bigornas em queda livre acertam seus pés. Verifica a chave e foge para a rua. Respira. Está livre. Decide que vai de táxi para conservar o perfume no corpo. Passa no mercado e compra uma bebida de menina, quase rosa. Compra também chicletes e coragem. Finge prestar atenção na conversa do taxista enquanto seu coração quase explode no céu da boca. Um caminho conhecido. Paga o taxista tagarela com vontade de enfiar o dinheiro na boca dele. Chega e encara o porteiro descaradamente, assumindo as peripécias iminentes, como se ele quase conseguisse adivinhar seus planos. A longa e asfixiante espera no elevador. A porta. Ela, previamente orientada que deveria entrar, pois a porta já estaria aberta. Clec. Estava aberta. Segurando o coração com as mãos para que esse não fugisse pela janela, a visão do corredor, o som da presença dele no banheiro. Cheiro de perfume masculino. A sala asseada. Ela passeia pela casa reconhecendo os cômodos, matando saudades de bons momentos, da primeira vez em que pisou no quarto, só para ler alguns contos, das outras visitas um tanto comprometedoras. Ela ainda passeia pela casa, já descalça, com um sorriso leve, infantil e malicioso. Encosta na janela e acende um cigarro. Ela veste seu lenço favorito, só para despi-lo depois.

Ele, perfumado, chega a sala com seu olhar perigoso de cigano. Beija-a com vontade, invadindo sua boca com língua e dentes sedentos, violentos, a mão já preparada com aqueles óleos próprios e irresistíveis. É ali no sofá da sala, a luz do dia, que iniciam sua manobras de amor tendo como platéia os moradores dos prédios vizinhos e os passageiros dos aviões que se preparam para aterrissar no aeroporto da cidade. Deliciando Voyers, quase gozam juntos. Aproveitando o pique adolescente dele e a eterna vontade dela, retomam as ações, mas em posições trocadas. O sofá torna-se, então, um aparelho de acrobacias enquanto ele abusa do alongamento dela. Um ponto nunca antes devidamente explorado é encontrado. Um tesouro numa praia deserta. Um tesouro úmido em uma praia explosiva. Ela sem fôlego, os pés próximos à cabeça, explodindo em mil sóis. Novas constelações nascem no céu que desaba sobre a cidade. Ela chove-se toda sobre a cidade. O céu inunda o chão de janelas abertas da sala. Consegue contar só até 7, depois perde-se em quantidades e sensações. O corpo dela aperta o dele ferozmente, retardando, atrapalhando, molhando todo ele. “Só posso estar morrendo”, conclui ela. “Ah, se morrer fosse tão bom assim! Indescritível”.

Entre banhos e muito mais chuva, entre cama e sofá, pia da cozinha, entre copos de vinho cor-de-rosa, entre mais cigarros e conversas e cócegas e piadinhas, entre saudades e mais vontades, entre calcinhas com brilhos e lambidas, entre outros veste-e-despe, quente e frio, entre pizzas e esperas, ela morreu e deliciou-se tantas outras vezes por todas aquelas vinte e quatro fantásticas horas seguintes.

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