terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Tipo raro

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Ela tinha um tipo de câncer raro no coração. Só no coração. Não era dessas doenças generalistas. Era algo específico e raro. Era uma dessas doenças que deixam a pessoa bem cansada. Sem vontades. Sem ilusão também. Ela sabia que a vida era apenas um dia após o outro. Nada importava. Era tudo apenas sucessão de acontecimentos. Alguns eram bons, outros não. Ela sabia que o amor não existia, embora lá no fundo ela quisesse acreditar ou esperasse o contrário. Mas ela conhecia desde cedo as delicadezas de seu destino.Não conseguia mais acreditar em nada. Nem nela mesma. Então seguia caminhando por aí e se divertindo com amenidades. Conversando amenidades. Tentando sorrir quando recebia um sorriso. Mas nada além disso. E todos seguiam cobrando coisas dela. Porque uma coisa que ela aprendeu bem cedo era que sempre seria cobrada, por todos e por tudo, porque isso era tudo que as pessoas sabiam fazer. Cobrar e cobrar. Cobravam sua atenção, cobravam seu empenho, cobravam seu interesse, cobravam sua participação, sua opinião e sua alegria. Ela era generosamente egoísta. Mesmo acreditando que não era responsável pelas carências alheias, dava às pessoas tudo exatamente como elas queriam, só pra ver se, atingindo seus objetivos, as pessoas desistiriam dela. Seria tudo simples assim. Mas não era. Ela sempre era cobrada por mais e mais. Isso era bem difícil, simplesmente porque ela não queria reagir a nada e não achava as coisas e as pessoas tão interessantes assim. Ainda mais quando tudo e todos eram sempre tão carentes e desgastantes. Com seus egos sempre tão grandes, tão participativos e querendo mostrar opiniões relevantes e provar tudo o tempo todo. Ela só queria ficar na dela. Fazendo as coisas dela. Vivendo do jeito dela. E de vez em quando se divertir só um pouco com as coisas que aconteciam. Ela possuía um desses tipos de intensidade pra dentro. Não é um dos tipos de intensidade exibicionistas de pessoas que precisam provar que são intensas. É dessas intensidades que existem e dominam os donos, silenciando tudo, só para serem sentidas, geralmente levando à morte. Talvez por isso seu coração fosse sempre assim tão fraco.



segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Censurem-me com tarjas pretas

Às vezes eu realmente acho que vou conseguir acessar um mundo paralelo. Como quando eu sou a única pessoa no 15º andar que consegue sentir a mesa vibrando como se estivesse passando um caminhão no teto. Ou igual a quando eu olho pela janela do 15º andar e não sinto a altura nem o rítmo da cidade acelerada. Apenas vejo aquele monte de luzes e me permito alienar como todo o resto.

Às vezes essa outra dimensão é aquele lugar pra onde sou arremessada sempre que sinto saudade. Eu sinto muita saudade. Então faço apostas mentais em cavalos imaginários fervidos em suor, guiados por Jockeys sem rosto. Só pra ver se esqueço. Acendo um cigarro que não habita meus dedos e trago um gole do melhor uísque que ainda não foi destilado. Só pra me acalmar. Só pra me acalmar. Censurem-me com tarjas pretas.

Fico imaginando que bom que seria o verão se eu pudesse dançar sobre os trilhos dos trens que habitam as cabeças dos semideuses. Brincando de semideuses. Quando penso em você é do sabor do cigarro que me lembro. Quando penso em você é do perfume errado que me lembro. Agora quando penso em você, penso em rosas roubadas de pizzarias fechadas. Penso também em partituras musicais e pequenas cartas de suicídio. Lembro da bronca. Penso que o Rio de Janeiro pode realmente ser mais bonito.

Lembro da vontade de vomitar que me deu quando você começou a pensar que eu amava seu amigo. Mas eu não amava e era tudo tão óbvio que eu só queria que você calasse a boca e me comesse. Então pra você me comer eu disse e fiz tudo errado. Foi tudo tão em vão. Porque você, justo você, era perfeccionista. E eu me esqueci que eu nunca poderia ser perfeita, por mais que eu tentasse, não pra você. Desde então todos os meus outros relacionamentos, semi-relacionamentos, semi-sentimentos, semideuses, rolos, ficantes, qualquer coisa, são comparados a você. E só eu sei, bem lá no fundo daquilo que chamam de alma, que ninguém nunca vai superar. Como naquela música brega que insiste em dar voltas de ciranda no meu cérebro, fica o
disco riscado bem na parte do “nothing compares to you”. Fico buscando em todos os outros um pouco de você.

Lembro de como as imagens daquele dia ficaram tão fortes numa memória que quase não existe. Eu bêbada te chamando, você descendo a escada com uma garrafa na mão, enquanto todos seus amigos davam em cima de mim e eu deixava. E da cara do taxista assustado quando subi no seu colo e disse que queria fazer tudo com você bem ali. Tudo que você quisesse bem ali. Só pra você entender que eu tinha escolhido você, não o seu melhor amigo. Era só você. E que aquela minha rebeldia toda era uma tentativa retardada de dizer com todos os poros o quanto eu queria ouvir eu te amo brincando na sua boca. Então eu fiquei presa na sua calçada, ali entre o batente da porta da sua casa e a porta do taxi. Com seu beijo entalado na garganta. Com a lágrima que nunca apareceu e a confusão de sentimentos que nasceram nos meus olhos, nos meus gestos e nas minhas durezas. Eu nunca mais voltei nem fui a mesma.

Tive que partir. Viajei e voltei. Mas em algum lugar entre você, o batente da porta, a porta do taxi, os erros na sua cama e o orgulho do seu melhor amigo, eu te perdi. Te perdi pro mundo. Pra todas aquelas dores e decepções de ilusões que você criou quando eu secretamente pedia apenas que você aceitasse minhas imperfeições. Logo eu que sempre acreditei com todas as minhas forças que tinha todo o direito de ser imperfeita. Eu só não esperava te encontrar.

Desde então tudo o que escrevo é pra você. Tudo o que sinto é pensando em você. Você me deu a consciência do quanto minha vida pode ser irreversível. Não importa quantas vezes eu volte. Não importa nem o número de vezes que eu substitua cada uma das minhas carências. Você está impregnado, é fato, é irreversível e você sequer merece tudo o que eu sinto. Desde então faço apostas mentais em cavalos imaginários fervidos em suor, guiados por Jockeys sem rosto. Só pra ver se esqueço. Acendo um cigarro que não habita meus dedos e trago um gole do melhor uísque que ainda não foi destilado. Só pra me acalmar. Só pra me acalmar. Censurem-me com tarjas pretas.

Eu sinto muita saudade. Mesmo quando sigo insistindo em amar todos os outros homens.